Pular para o conteúdo principal

A Perna Cabeluda

Imagem da internet/Autor desconhecido.

Eu tinha seis anos de idade quando conheci a mais famosa lenda popular de minha cidade… que diz que em algumas noites aleatórias do mês de dezembro, num velho açude que fica muito próximo a minha casa, aparece uma enorme e peluda perna, que sai andando sem corpo e assustando as pessoas, dando nelas um admirável pontapé na bunda. Dito isso, você já deve imaginar que desde criança eu tenho muito medo de onde moro e mais medo ainda dessa maldita Perna Cabeluda, que a vida toda tem me assombrado.

Meus pais acreditavam na Perna Cabeluda, mas não demonstravam tanto medo quanto eu, eles diziam que eu era homem e tinha que ser forte, que a Perna Cabeluda nunca me machucaria e que, por prevenção, nós não sairíamos à noite de casa quando estivéssemos no mês dezembro, para assim não termos o risco de encontrar no caminho a monstruosidade em questão, porém nunca consegui tirar da minha cabeça a ideia de que um dia levaria um pontapé na bunda. 

Passei a minha infância sofrendo bullying por parte dos meus colegas, que riam de mim e faziam eu me sentir o maior dos covardes da terra. Durante muitos anos fui a chacota de todos da escola e da pequena cidade onde eu moro. Eu tinha treze anos, quando um trágico acontecimento jogou a minha vida de pernas para o ar. O meu pai, indo me buscar na escola, acabou se distraindo e sendo atropelado por um caminhão de sorvete. Coitado, morreu antes de chegar ao hospital. Nunca mais consegui tomar sorvete na vida.

Eu estava abalado e sem vontade de viver. Depois da morte dele, minha mãe teve que aumentar a jornada de trabalho, o que não restava tempo para me levar e buscar na escola. Quis abandonar os estudos, mas ela não deixou e me obrigou a ir e a voltar sozinho… O tempo passou, eu já era adolescente e ainda assim não conseguia levar uma vida normal, por medo da Perna Cabeluda.

Aos dezesseis anos, comecei a fazer terapia. Não queria, mas mamãe disse que se eu não fizesse, ela me abandonaria. Morria de medo de ficar sozinho em casa, então aceitei e, para minha surpresa, isso surtiu positivamente nos anos seguintes. Consegui reprimir parte do meu pânico durante onze meses a cada ano: somente em dezembro eu vivia recluso e me borrando de medo da Perna Cabeluda. Quando fiz vinte e cinco anos, o meu medo já não era mais o mesmo, eu levava uma vida quase normal. Saía mais vezes de casa, curtia alguns momentos com os  meus amigos, flertava com as garotas e tentei até conseguir um emprego em um mercadinho perto de casa, o que não deu certo, pois os empregadores não aceitaram me dar férias em todo dezembro. 

Certo dia, faltando menos de uma semana para o Natal, a minha mãe teve um infarto e faleceu. Meu mundo desabou, eu não tinha nenhum parente vivo e não sabia o que iria fazer da vida. Por sorte, ela me deixou algumas economias. Após o enterro, decidi me isolar em casa até janeiro do ano seguinte. 

Na noite de Natal, tive um sonho que me fez mudar de perspectiva. No sonho, os meus pais apareciam para mim e me diziam que estavam decepcionados. Enquanto mamãe chorava, meu pai me deu um alerta que não consigo esquecer.


— Arthur, querido, cuidado! Você está fazendo tudo errado. A Perna Cabeluda virá atrás de você qualquer dia desses, sabia?

— Não diga isso, pai... não!

— Pois é verdade!... A Perna Cabeluda vai atrás de pessoas covardes e que moram sozinhas. É o que ela gosta, de medrosos desprotegidos... Filho, você está fazendo tudo errado em se esconder dela.

— Meu Deus, mas o que eu faço, papai?

— Seja homem! Siga a Perna Cabeluda, a procure, acabe com ela... Vença ela antes que ela acabe com você com um pontapé no rabo.

— Eu não consigo, não posso… Me ajudem!


Acordei em choque, o que meus pais me disseram durante o sonho só podia ser um aviso celestial. Agora era caso de vida ou morte. Decidi procurar a Perna Cabeluda e acabar com ela, era melhor do que ela vir atrás de mim, antes ser o caçador que ser a caça. Meu Deus! Só de pensar nisso, me arrepiei todo. A abominável deveria estar louca para dar o bote, ou melhor, o pontapé, era preciso que eu agisse rápido ou eu seria a próxima vítima. 

Olhei apreensivo para o velho relógio de cabeceira, herdado de papai. Eram quase três horas. Senti um calafrio profundo. Relutei, chorei, rezei, rodopiei e chorei mais um pouco, até criar força nas canelas e conseguir sair de casa. Meu destino: o famigerado açude.

No meio caminho, tive uma vontade enorme de voltar para casa, aquilo parecia loucura. Estava quase arregando, quando lembrei do que meu pai dissera no sonho. Não adiantava fugir, um dia ela viria atrás de mim e me daria um admirável e mortífero chute na bunda. 

Cheguei ao açude quase infartando. E para piorar, a lanterna estava falhando um pouco, se pifasse, eu ficaria em completa escuridão. Já estava entregando a minha alma a Deus, quando escutei alguns ruídos em meio ao mato. Caí de joelhos no chão e umas corujas começaram a cantar. Acho que estavam rindo de mim, encomendando a minha morte. Um novo e constante ruído começou a me incomodar mais que tudo.  Era o som dos meus dentes batendo uns nos outros. Que ódio e vergonha eu sentia de mim mesmo. Como se não bastasse tanta humilhação, eu senti que iria molhar as calças.

Fui para a beira do açude me aliviar, abaixei as calças e vi a coisa mais aterrorizante do mundo. O terror tomou conta do meu corpo, eu comecei a me tremer da cabeça aos pés. Não conseguia correr ou gritar. Sobrenaturalmente, a água do açude começou a se elevar e do meio dela saiu lentamente o monstro peludo. 

Ela era medonha, acho que não poderia existir coisa mais horripilante, fiquei perplexo ao ver que o tamanho da Perna Cabeluda era imensuravelmente maior que o meu, ela era do tamanho de um gigante. Ela era extremamente cabeluda, os cabelos eram negros e grossos, cobriam quase toda a pele, que notei ser vermelha. Tanta gente careca e essa monstruosidade cabeluda assim, pensei. Eu estava louco, constatei, quase rindo da minha desgraça.

Caí de quatro no chão, não conseguia correr, fugir, escafeder dali. Enquanto eu me despedia da vida, o monstro se movia lentamente em minha direção. Consegui me arrastar um pouco e notei que estava sem as peças de roupa inferiores. Eu iria morrer seminu, não poderia ser pior a humilhação. Olhei para trás e ela estava já fora do açude, quando reparei no seu enorme e peludo pé, eu consegui dar o meu primeiro grito de agonia. Eu não queria acreditar no que estava vendo. As unhas do pé dela eram quase do meu tamanho. Tudo bem que eu era um homem baixo, ainda assim um metro e meio de unhas são mais que suficientes para acabar com o psicológico de qualquer um.

Minha voz voltou e eu comecei a gritar. Com os gritos, voltou a choradeira. Consegui ficar em pé. Não deu tempo de agradecer a Deus, só saí correndo o máximo que pude, infelizmente tropecei justamente no pé da Perna Cabeluda. De cara com a Perna Cabeluda, só me restava uma coisa: gritar. Peguei nos meus glúteos e comecei novamente a chorar, eu sabia que era a última vez que os sentiria.

De repente, ouvi um barulho tão assustador que tenho certeza que desencadeou um início de infarto em mim. Era a risada dela. Ela se aproximou ainda mais de mim e falou com uma voz forte e rouca:


— Vire-se humildemente para mim, humano pateta da bunda branca. 

— Jamais, maldita Perna Cabeluda! Nunca você terá o gosto de tocar na minha…! Minha… Demônia! Morro, mas não me entrego!


Não deu nem tempo de me orgulhar por minha ousadia. A Perna Cabeluda começou a voar e a girar no ar, provocando um redemoinho ao nosso redor. Meu coração parou de bater quando a vi levantar o único e peludo pé. Em seguida, não pude reparar em mais nada que na dor agonizante que senti quando o pé cabeludo encontrou a minha bunda. Eu nem percebi de imediato, mas o pontapé me fez voar cerca de quatro ou cinco metros.

Depois de satisfeita por ter me dado um certeiro pé na bunda, a Perna Cabeluda voltou para o açude, sumindo nas águas. Eu, mesmo com toda a dor, consegui voltar para casa. Quando fui tomar banho, notei que parte do desconforto que eu sentia, vinha não só da dor pela agressão sofrida, mas também porque tinha lá… um pedaço enorme de uma unha dela. A maldita quebrou uma unha. Comecei a rir desvairadamente, talvez ela tenha sentido um pouco de dor ao perder a unha? 

Ainda era Natal e eu estava vivo. Vivo! Apesar de não saber por que ela me poupou a vida, me sentia grato por ver a luz do dia mais uma vez e, especialmente, pelo aprendizado daquela madrugada: jamais ir atrás da Perna Cabeluda, pois a experiência é dolorosa demais. 


Lizandra Souza.

Comentários

  1. chorei aqui . kkk sera q tem perna cabeluda aqui na minha cidade? fora a da minha tia ... kkkk

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. RSRSRS dá tua tia é, rsrs... Obrigada pela visita, beijo : )

      Excluir
  2. HASUDHASUDHSAUDHAUSH eu ri muito com esse conto, com certeza nunca irei atrás de uma perna cabeluda, Mon Dieu! Adorei! HASDHSADHAUHSA
    Vixe, falando em dica de livro, nem me lembre, guria! Tenho muitos para ler aqui rsrs
    Superemos! *-*
    Um beeijo!
    Pâm
    http://interruptedreamer.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Pâm, nunca iremos atrás da perna cabeluda rsrsrs, realmente nós superemos, minha lista é enorme, obrigada pela visita, beijo: )

      Excluir
  3. Magina! Eu que agradeço,viu?
    HAHA
    Que fofa! Então somos parecidas, ou simplesmente amantes de leitura,né? HAHAHA
    alguém que ama Feios! ebaaaa \o/
    um beijo!
    Pâm
    http://interruptedreamer.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. De nada... Pois eu também agradeço, parecidas e loucas por leitura rsrs... Beijo : )

      Excluir
  4. Estou rindo que nem doida aqui AHUSAHSUHASHHUA'
    Menina eu adorei, que isso de perna cabeluda hein?
    Quando comecei a ler fiquei até com medinho HUASHUHAHS'
    Será que na minha cidade tem muitas pernas cabeludas? hahaha'
    Amei amei.
    Parabéns!

    Beijocas
    paixaoliteraria.com

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Kéziah, que bom que gostou, obrigada pela visita, beijo : )

      Excluir
  5. Gostei bastante do conto!
    Beijos

    cocacolaecupcake.blogspot.com.br

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Bruna, fico feliz que tenha gostado, obrigada pela visita, beijo : )

      Excluir
  6. Olá Fran, que bom que gostou. Obrigada pela visita.

    Beijo ; )

    ResponderExcluir
  7. Perna Cabeluda essa foi de matar. kkkkkkk
    Ri demais.. coitado, vai ficar com trauma para sempre..
    :D
    http://anamenires.blogspot.com.br/
    Ah, vou te dizer quando eu começar a postar a história sim"

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Anhy, diga sim, estou aguardando, amei o título. Obrigada pela visita.

      Mega beijocas ; )

      Excluir
  8. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  9. Kkkkkkk em Fortaleza entre as décadas de 80 e 90 essa lenda se tornou muito forte,com o auxílio de um programa de radio de muito sucesso chamado João Inácio Junior,onde tinha um quadro de sobrenatural,eu era criança e tinha acabado de mudar para um bairro literalmente novo chamado Araturi eram prédios de quatro andares e muito mato e lugares ermos,em Fortaleza dizia que guarda roupas eram espécies de portais onde ela aparecia,olha eu pequena naquele cenário de filme de terror e bombardeada pela lenda da perna cabeluda,eu vivia apavorada foram tempos difíceis.

    ResponderExcluir
  10. Também sou do Ceará, Mônica, sei bem hahaha conheci a lenda por volta dos anos 2000, no interior ela ainda estava em alta huahuahua

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Obrigada por comentar.